Rostos em desfiguração - Selvagem

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

A polícia apresenta suas armas
Escudos transparentes, cacetetes
Capacetes reluzentes
E a determinação de manter
Em seu lugar

O governo apresenta suas armas
Discurso reticente, novidade inconsistente
E a liberdade cai por terra
Aos pés de um filme de Godard

A cidade apresenta suas armas
Meninos nos sinais, mendigos pelos cantos
E o espanto está nos olhos de quem vê
O grande monstro a se criar

Os negros apresentam suas armas
As costas marcadas, as mãos calejadas
E a esperteza que só tem quem ta
Cansado de apanhar
*Composição : Paralamas do Sucesso


A música Selvagem é bem apropriada para concluir esta reflexão. O título da música já é extremamente apropriado. Aprendemos que ser civilizado é não agredir, não ferir, manter as coisas em ordem. Infelizmente, aprendemos ignorar, ser indiferentes faz parte das regras da civilização. Se me incomodo, simplesmente, “lhe dou as costas”. Da indiferença nascem as exclusões e estigmas, gerando tudo o que é forma de destrato a dignidade humana. Mas nossa distorção em relação ao que é civilizado é gerada pelas formas de se fazer política, esta, antes de tudo é que precisa ser mudada.

Ainda existem aqueles que procurar mostrar o olhar daqueles que são invisíveis na sociedade. O cinema de Godard apresenta como característica mostrar a visão dos que estão à margem da sociedade. Assim como apresenta imagens que não estamos acostumados a ver nos cinemas mais comerciais... A cidade apresenta suas armas. E quando paramos para olhar, de fato, aqueles que estão morando nas calçadas, pedindo nos sinais, nos assustamos, vemos quão selvagem é nossa sociedade. Os negros, seres invisíveis na sociedade americana até a década de 50, 60, começaram a se utilizar de uma estratégia simples, mas ousada, ir onde eram proibidos, anulados. Obrigaram a sociedade a vê-los. Não esconderam seus rostos. Mostraram o absurdo das leis a que eram submetidos, mostraram suas costas marcadas e mãos calejadas...

Que os negros, os meninos de rua, os mendigos, as mulheres, os homossexuais e todos que a sociedade lhes deu as costas possam juntos gritar:

Perto está o que me declara justo:
 
Quem fará processo contra mim?
Apresentemo-nos juntos!
Quem é meu adversário de processo?
Apareça diante de mim!

Rostos em desfiguração – Troca de Olhar

[1]

Experimente fixar o olhar na primeira imagem. Entre muitas coisas que se pode identificar, o que fica evidente é a expressão de medo, espanto. Na segunda foto, este olhar já é mais pacífico, cansado, talvez, porém o que marca nesta foto é o rosto envelhecido, calejado. A foto mostrada acima é de dois momentos de Sharbat Gula, fotografada por Steve McCurry, National Geografic [2]. Na primeira foto, Sharbat possuía 12 anos, encontrava-se num campo de refugiados no Paquistão, em 1984. Esta menina foi encontrada após 17 anos pelo mesmo fotógrafo, o qual revelou a segunda imagem.

O que mais impressiona é o precoce envelhecimento do rosto desta jovem com 30 anos de idade. Agora casada, com filhos, possui um olhar sem medo. É dolorido ver a beleza desta jovem ter se destruído tão precocemente. Seu rosto é uma denuncia viva de como nossas sociedades atuais possuem a capacidade de desfigurar estas faces. Lembrando da reflexão anterior, estas fotos nos ajudam a sentir e a lembrar destas pessoas que foram marginalizadas e convite que se faz também é para uma travessia. Travessia na troca de olhar. Por parte daqueles que estão em situação privilegiada, trocar o olhar do estigma e da indiferença, pelo olhar da compaixão e da missão. Por parte daqueles que sofrem, trocar o olhar de medo, desespero, pelo olhar pacífico, daquele/a que tem força para questionar e lutar.

[1]Sharbat Gula. Fotos de Steve McCurry, National Geografic.

[2]Buchalla, Anna Paula. Só o olhar é o mesmo. Revista Veja.


Rostos em desfiguração - Invisíveis

Isaías 50.4-9 [1]

O Senhor Deus me deu
língua de aprendizes,
para que eu saiba responder ao cansado.
De manhã em manhã desperta meu ouvido
para que eu ouça como os aprendizes.
O Senhor Deus abriu meu ouvido.

E eu não fui rebelde,
não recuei.
Dei minhas costas aos que batiam
e meu rosto aos que arrancavam (a barba).
Não escondi meu rosto
de afrontas e cuspidas.

Pois, o Senhor Deus me ajuda:
por isso não serei vencido,
por isso fiz de minha cara uma pedra.
E assim experimentado que não serei envergonhado.

Perto está o que me declara justo (= Deus):
Quem fará processo contra mim?
Apresentemo-nos juntos!
Quem é meu adversário de processo?
Apareça diante de mim!

É por isso! O Senhor Deus me ajuda:
Quem me poderá condenar?
(É isso! Todos eles irão se decompor como um vestido (velho)
a traça os comerá.)


Quem é este, presente neste texto, que se interroga, se desafia e contesta?

O autor do texto não pode ser identificado com precisão, porém sabe-se que relata uma experiência. Preparado, enviado por Deus. Ele é torturado por outros, mas sabe que não é abandonado no martírio. Ele é um aprendiz. Mas o que se ressalta é que este tem uma língua de aprendiz. Sua realidade é de alguém que sabe responder ao cansado. Identifica-se como um profeta. Também não se apresenta como discípulo, mas aprendiz... Ele pede para que tenha a mesma sabedoria para ouvir e se posicionar em sua realidade. Deus intervém. O aprendiz não foge, ele enfrenta sua realidade.

Ele sofre, é desonrado em sua face, cuspido na cara! Porém, com a ajuda do Senhor, faz de seu rosto uma pedra dura. Seu rosto é humilhado, desprezado, endurecido. Quando se fala do rosto se fala do todo da pessoa. O rosto expressa aquilo que ocorre com a pessoa.

O aprendizado se dá não só por aquilo que aprende dizendo e ouvindo, como é mostrado no inicio do texto. Na luta e na dor da vida também se aprende. O sofrimento não é encarado como destino, mas como luta. A dor e a luta não eram previstas pelo aprendiz, aqueles que estavam cansados (os exilados cansados Is 40.28s) se transformam nos cruéis inimigos! Estes passam, agora, a ser desafiados. Os piores adversários são aqueles que estavam próximo a ele... Os cansados são agora os torturadores! A experiência com o Senhor é de ajuda. O qual não o livra do sofrimento, mas se faz presente. Para o autor, com esta ajuda, não será vencido, eu sei que não serei envergonhado. Ele contesta, questiona seus torturadores. Deus o declara justo. Ao invés de lamentar, ele contesta. Esta milagrosa perseverança vem da ajuda divina. Ele provoca seus torturados porque tem certeza da justiça.

Nos rostos em desfiguração há liberdade para o grito, desafio provocador. A dor não é vista como destino, mas possibilidade de transformação. A não identificação do eu central no texto abre portas para que se pensemos nos rostos desfigurados de hoje.

O texto em Isaías traz uma provocativa: os torturadores são pessoas próximas ou pertencentes ao mesmo grupo do humilhado. Reservemos um tempo para olharmos estes rostos de pedra. Lembrar destes rostos invisíveis. Os rostos desfigurados são aqueles que estão invisíveis pela sociedade. Não é todo dia que paramos para observar e sentir a dor das pessoas que estão em situação desumana nas ruas de nossas cidades.
 
Do lembrar ao assumir estes rostos temos uma difícil travessia. Essa travessia inclui diversas dimensões. Como questionar as formas elitistas de governo que se preocupam primordialmente com o progresso econômico, formação de classes consumidoras, abdicando de programas que dêem acesso a educação pelos jovens, o que lhes empurram para os abismos da marginalização e da invisibilidade social. Numa dimensão teológica seja levar esperança para aquele (Isaías 50.4-9) sofre humilhação, mostrando a aprender a falar e a ouvir do Deus que se coloca junto a ele. E acima de tudo, ensiná-los a gritarem pelo seu direito de existirem em plenitude.

[1] Tradução Própria.

9 comentários:

Ju disse...

Hebert Viana sabe o que diz.
Acho que é invenção humana essa tal civilização. E tudo aquilo que é inventado talvez não exista.

E resignar-se à "não-civilização" é dizer sim às injustiças.

"Pois, o Senhor Deus me ajuda:
por isso não serei vencido"
(E essa é sempre a esperança!).
;)

Letícia disse...

Eu li tudo ouvindo Radiohead e veio de novo o balão de pensamentos grudados. A gente resseca nossa própria existência. Não tem doença social pior que o abandono. E lá vai gente escrever em revistas de grande circulação e dizer que o nosso presidente não faz nada. Ou que o preço do petróleo é o que destrói nossa sociedade ou dizer também que a Carolina Dickman emagreceu e fez uma plástica. E eu continuo achando que a minha mãe estava certa. O mundo somos nós. E observo pessoas que moram nas ruas. Não são, nem de longe, diferentes de mim só porque estou de carro e elas não.

Adriano Caroso disse...

Sem palavras Leandro. O ser humano é mesmo Selvagem!

Camila disse...

Injustiça, preconceito, indifereça. Palavras grandes. Palavrões.

Minha mãe me ensinou que falar palavrão é pecado. E cometer palavrões o que é?

Eu sigo, aqui, olhando para os lados e me sentindo impotente, mas olho mesmo assim, o mundo real me fascina e me distroi. Talvez eu esteja mais detruída que muita gente, mas (talvez a indiferença ou a diferença os impede de notar.

Fiquei reflexiva...

Maria, vulgo dos livros disse...

Tô arrepiada aqui...
Fico de férias sem nem fazer visitinhas nos blogs e quando voltou dou de cara com um texto MARAVILHOSO que nem este =)

disse...

Que reflexão perfeita a sua Leandro.
Comentar mais não precisa você já disse tudo.
Eu só lamento no que se transfou o Homem, um ser abominável. Selvagem é um termo que não cabe ao homem pois os animais selvagens são muito melhores que Homem.
Depende nós ajudar esses rostos desfigurados a gritar por liberdade!

Perfeito Leandro que belo texto com reflexões para serem colocadas em prática, temos que partir para ação!

Beijos!
Rô!

Anônimo disse...

Para mim, Cazuza e Herbet são os melhores dessa geração.
Suas letras fizeram todo sentido em 1980 e fazem até hoje.
São geniais.

Adorei seu post Lê.

Bêjo!

Jamille Lobato disse...

Eu, na qualidade de filha de um deficiente visual, sem bem do que vc está falando quando cita que as pessoas fingem que não vêem problemas sociais...
Lutemos, então, para acabar com essa diferença.

Germano Viana Xavier disse...

Sobre a foto, Leandro, na disciplina fotojornalismo fiz um estudo sobre ela. É realmente marcante e verossímil o que você diz aqui em tua reflexão.

E penso na própria vida como arte. Arte no conceito de deformação. Deformação criadora de significâncias.

Daria uma tese se adentrássemos por tuas palavras e inquietações. Fiquemos com o nosso espanto, por ora. Talvez nossa melhor resposta.

Um abraço forte.